3/23/2005

Pedir peras al olmo

Parece que a Festa da Música tem sido o único acontecimento que tem agitado as tranquilas águas musicais em Portugal nestes dias, durante os quais – entre remorsos e saudades: bela combinação… – não consegui ter calma para actualizar o meu blog. Pelo menos, Augusto M. Seabra no PÚBLICO, Álvaro Teixeira no Crítica de Música, Pedro Arauxo no As disfunções da cultura e Luís Pena no Decompor escreveram sobre o citado mega-festival adoptando diferentes perspectivas.

É desagradável ver utilizada a Festa da Música como arma para criticar a gestão global do CCB, sobretudo quando se mistura com uma espécie de beateria um bocadinho snob e anti-capitalista que faz lembrar aqueles debates bizantinos sobre a arte e a sociedade que preocuparam muito aos compositores da geração do Lopes-Graça e que andaram a chatear toda a gente até à década de 80. Nesse sentido, a Festa da Música é um produto da sua época que, ainda por cima, vinda de Nantes (cidade onde estudei, da qual tenho óptimas recordações) e transplantada com sucesso para Lisboa (cidade onde tenho morado durante mais tempo na minha vida), Bilbau (também uma cidade, por assim dizer, do meu entorno, porque fica a uma hora de distância de La Rioja) e Tóquio (esta, que chatice, fica longe e não conheço…) se torna mais interessante e significativo.

Concordo com o Luís Pena: é uma experiência única poder escutar ao vivo e de forma intensiva, em muito pouco tempo, séries de obras ou obras que talvez não tínhamos relacionado entre si e que, ouvidas as umas junto das outras, começam a se iluminar reciprocamente. Essa audição comparativa pode resultar numa riqueza surpreendente. Que não é para todos os dias? Talvez, mas não é isso o que se discute. E que querem que lhes diga? Também gosto de escutar boa música em salas cheias: só espero que ninguém confunda esse prazer com demissão crítica. De facto, acho que neste post critico algumas coisinhas…

René Martin, na conferência de imprensa realizada durante a Festa de 2004, deixou bem claro o seu desconforto perante a ideia de descentralizar – começo a detestar esta palavrinha – a Festa da Música e de levá-la para Viseu ou para qualquer outra cidade portuguesa. Curiosamente esse desconforto não foi nem noticiado, nem discutido por ninguém: antes pelo contrário a tal descentralização foi recebida em Portugal com um geral e naïf contentamento.

A Festa da Música é a Festa da Música e, tal como foi concebida, só faz sentido nos moldes da programação maciça endereçada para uma multidão. E conste que isto não é incompatível com a minha admiração pela determinação e pela inteligência que demonstraram os responsáveis pelo Teatro Viriato ao tentarem fazer parte da mesma… Porém, a Festa não pode, não deveria ser usada – agora sou eu a falar – para tentar resolver eventuais carências estruturais em matéria cultural. Dá que pensar, por exemplo, que fora de Bilbau, em Espanha, quase ninguém se tenha apercebido do impacto de “Musika-Música”.

Ainda mais uma coisa que me incomoda: a questão da internacionalização dos intérpretes portugueses através da rede criada pelas Festas da Música. Parto da ideia de que se pode desejar que, em cada versão da Festa, seja dado o devido destaque aos intérpretes locais e, francamente, apesar das ausências, acho que isso está a ser feito, pelo menos, tanto em Lisboa, como em Bilbau.

Aceito que o CCB – ou, seria ainda melhor, uma produtora análoga à criada por Martin – deveria ter uma actuação mais sólida, respeitosa para com os músicos locais e agressiva nesta matéria. Eu própria – interesseira… – gostava de pode ler discursos musicológicos escritos e concebidos em português, em espanhol e em japonês (e também em inglês, neerlandês, russo, húngaro, polaco, finlandês...) relativos aos temas da Festa da Música, e não apenas em francês como tem sido o habitual até agora (e com a excepção da Festa dedicada à música russa).

Mas, de novo, ao colocar o assunto nestes termos, parece que se pretende transformar a Festa da Música numa solução para resolver problemas de carácter estrutural. Onde param as produtoras? Quais são os intérpretes portugueses que estariam dispostos a desenvolver uma carreira nas condições que, aparentemente, aceitam os músicos que fazem parte da troupe de René Martin? E, ao contrário, quantos são os espanhóis que vão tocar em Nantes, em Lisboa ou em Tóquio? Quantos os japoneses que irão tocar em Nantes, Bilbau e Lisboa? Vão ser precisas quotas também para isto? E qual é a razão pela que René Martin e os restantes produtores locais deveriam aceitar semelhantes trocas? Para demonstrar que são porreiros?