4/11/2005

Orquestras

As orquestras do século XXI têm perante elas um arriscado dilema, cujo desfecho está longe de constituir uma questão de fácil resolução. Arrastando o peso de uma longa história e submetidas à pressão de um mundo que muda a uma velocidade vertiginosa, são instituições que, em muitos lugares do mundo, estão à procura da sua identidade. As dificuldades de ordem financeira que atravessam, agravadas nas actuais circunstâncias, são tão evidentes que se cai na tentação de pensar que não vale a pena destacá-las. Divididas entre a vontade de recuperar a função social que adquiriram no século XIX integrando-se nas comunidades às quais pertencem e a tendência para a preservação de um legado eminentemente oitocentista e europeu, sufocadas pela crise económica e em concorrência com outros formatos e conteúdos culturais que chegam a milhões de pessoas e que movimentam quantidades exorbitantes de dinheiro, a previsão do seu futuro está repleto de incógnitas.

Ao longo do século XX, o público das orquestras cresceu, tanto nas próprias salas de concerto, como através da rádio e das gravações em LP e, depois, em CD. Os dois modelos produtivos principais, ambos com raízes no século XVIII, sobreviveram como manifestação simbólica de poder (por exemplo, nas orquestras das rádios nacionais, das quais os vários agrupamentos da antiga Emissora Nacional são um bom exemplo) ou actuando ao vivo para uma minoria (àquela à qual pertence o reduzido número de pessoas que podem pagar um bilhete para escutar um concerto sinfónico não subsidiado) e vendendo depois o maior número possível de gravações e retransmissões (obviamente, mais baratas do que um bilhete para um concerto “ao vivo”, numa sala com condições acústicas apropriadas, a preço de “mercado”).

É certo que os países asiáticos são muitas vezes referidos como a esperança para a orquestra enquanto instituição na época da globalização. Há também circunstâncias históricas e sociais específicas que explicam algumas excepções no contexto global. É o que aconteceu em Espanha e Portugal, onde, após a instauração da democracia, se assistiu a um impressionante processo que poderíamos qualificar de reconstrução cultural que se materializou particularmente na fundação de orquestras e na edificação de auditórios. Na actualidade, porém, os indícios que permitem avaliar a ligação entre as orquestras e o seu público não são demasiado animadores e há sintomas nos quais o pessimismo encontra fundamento. Verificam-se, em salas de concerto meio vazias, as dificuldades para encontrar o repertório acertado. Nas salas que enchem, dá a impressão de que o ritual tradicional do concerto público chama a um público cada vez mais envelhecido.

As orquestras têm-se transformado em museus, ou seja, em instituições caras e isoladas das condições sempre instáveis do mercado, cuja função principal é a de preservar e divulgar artefactos de “alta cultura”. Este prestígio cultural explica em parte que o trabalho das orquestras prossiga, já que – pelo menos, por enquanto… – nenhum decisor quis assumir a responsabilidade de aparecer nos telejornais para ser acusado de “assassinar”, tirando emprestada a expressão ao crítico Norman Lebrecht, a muito séria e muito ocidental música clássica. Na época em que vivemos, porém, é a própria noção de “alta cultura” a que está em crise: a definição da sua pertinência e do seu alcance num mundo global e multicultural – e, portanto, a definição do papel que as orquestras assumirão nesse mundo – faz parte de um debate em aberto.

Algumas referências:

J.P. Burkholder, “The Twentieth Century and the Orchestra as Museum” em J. Peyser (ed.), The Orchestra: Origins and Transformations, (New York, 1986), pp. 409–33.
Lebrecht, N., “Classical music plays away”, La Scena Musicale (19-IV-2002)
- When the music stops, Londres, Pocket Books, 1997.
F. Peregrín Fernández, “Música clásica, globalización y multiculturalismo”, Mundoclasico.com (27, 29 e 31 de Maio de 2002).
Talbott, M., The Business of Music, Liverpool University Press, 2002.

Nota: o texto foi originariamente publicado no webzine Notas Soltas, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian.