De resto, a certidão de óbito do modernismo - desculpem que não entre em discussões historiográficas ou conceituais: fica para outro dia - foi expedida há décadas. Por isso, pelo menos em termos teóricos, não percebo o espanto provocado por esta obra de Emmanuel Nunes.
As obras que, desde então, foram estreadas reclamando esta herança cumpriram o seu papel institucional de luminárias de Ocidente e de emblemas do seu desenvolvimento. Para a nossa sociedade opulenta, este ascético luxo não supunha um gasto incomportável, e sempre dava alguns trocos em benefícios simbólicos. As ditas obras negaram o corpo, preservaram a miragem da superioridade da razão alheia a qualquer critério de utilidade e, como era de esperar, nunca interessaram a mais do que a uma minoria hiper-instruída. Isto faz parte do seu código genético.
Ou seja, o facto de ontem terem permanecido umas 150 pessoas no São Carlos até ao fim da ópera (um par delas para a apuparem, dito seja em honra do peculiar sentido do humor que demonstraram ter), ou os números divulgados a propósito da parca audiência que assistiu às retransmissões realizadas para diversas salas do país (das 11.000 esperadas, apenas umas centenas) são perfeitamente dispensáveis, sobretudo para quem aceita as regras de um jogo onde a realidade, como se sabe, é um detalhe sem importância. Paradoxalmente, e na mesma lógica, é oca (e transparece uma certa ingenuidade na concepção dos processos através dos quais se escreve, difunde e conforma a história) a hegeliana invocação da posteridade como a juíza imparcial que irá pôr no seu merecido lugar essas obras – Das Märchen em particular – que agora não apreciamos porque não percebemos. Há quem acredite no céu, ou, por outras palavras, no seu ingresso no panteão dos escolhidos, ao lado de Bach e de Beethoven.
Lá está: beleza, senhores, o que queremos é beleza. A que aprendemos a apreciar na música de Bach e de Beethoven, ou outra a rebours, bizarra e suicidária, enquadrada, até, numa linhagem artística já exausta, moribunda e anacrónica. A obra de Nunes pertence a este mundo e eu tenho admirado e desfrutado de uma boa parte dela. Afinal, da nossa época também faz parte a subcultura própria dos consumidores de música contemporânea modernista…
É certo que, no projecto inicial de Das Märchen, de meados da década de 90, Nunes explicou, com decisão, a sua própria concepção dramatúrgica da obra e que qualquer relação das suas ideias com o que vimos/escutámos no São Carlos, ou seja, com esta montagem específica é mero acaso. No entanto, a causa do falhanço deste espectáculo não pode ser apenas atribuída às discrepâncias ou aos desequilíbrios entre o que se viu e o que se escutou. Posso referir, como contra-exemplo, Caminho ao Céu, de Carlos Marecos, produzida em 2003 pela Culturgest: a beleza da partitura sobreviveu, na que foi a minha primeira e, por enquanto, única audição da obra, a uma montagem com a qual eu não senti a mais mínima empatia.
Já agora, também queremos pertinência. Aconteceu-me, logo no início da escuta de Das Märchen, ver-me transportada ao Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Coincido com Carlos, do Ideias Soltas: a música de Nunes, nesse espaço, é pertinente, integra-se num projecto coerente – talvez ultrapassado quando julgado a partir de determinadas premissas, mas coerente. No São Carlos, Nunes e a sua música ficam descontextualizados e, portanto, desprovidos de qualquer poder, quer reflexivo, quer encantatório. E não lhe conferirão, por certo, sentido os utópicos clichés de matriz hegeliana transformados em princípios orientadores da política cultural, evangelicamente amplificados em frases como a seguinte: [produzir esta ópera é] "como plantar uma semente, cujo resultado não se vê logo a seguir", pronunciada por um dos responsáveis pela Casa da Música.
Tão pouco há nisto nenhuma originalidade. Augusto M. Seabra tinha-o escrito no Letra de Forma: “Não vejo “promessa” ou “aurora” alguma na obra [Das Märchen], tão só os fogos-fátuos de uma ópera enquanto manifestação do poder.” Afinal, falamos de política e também de ética: onde se inscreve, nos tempos que correm, o programa de "preservação da autonomia do simbólico" defendido por Nunes e do qual esta obra acabou por ser, talvez involuntariamente, um sarcástico manifesto?