Carlos de Mello, “A música em Portugal (I)”, O Dia, 19 de Março de 1902, p. 2.
O domínio da música está hoje em Portugal nas mãos de amadores, Este facto originalíssimo – e decerto único no mundo – importa uma descentralização muito grave e uma desorganização muito profunda, que não nos compete estudar nem discutir. Convém entretanto não o deixar no escuro, para que atentem nele os raros espíritos de eleição que ainda olham para as coisas portuguesas alheados d’el rei Dinheiro.
Orquestras portuguesas não existem, já que na composição das actuais mais da metade dos músicos – e que músicos! – são estrangeiros! Os nossos artistas de primeira ordem saíram de S. Carlos para formarem cá fora sextetos, onde vão honrando a Arte para não morrerem de fome; outros, bem poucos, ficaram no teatro nacional (?) lírico (?), nas segundas ou terceiras estantes dos primeiros lugares. Os mais estão nos teatros pequenos. Associação musical não existe, ou, se existe, não tuge nem muge. Há porém solidariedade artística, felizmente.
Essa solidariedade manifestou-se por forma brilhante no concerto do distinto violinista Cardona, no Conservatório, e no modo por que se organizaram o curso e a orquestra do Real Instituto. Preciso é, porém, que ela vá mais longe, e que se compenetre com inteligência, com energia e com desinteresse do elevado papel que lhe cabe na Arte, abandonando o processo das reclamações vocais e dos protestos platónicos, que de nada servem, para iniciar o restabelecimento do antigo espírito de classe, impondo-se por uma união sólida, escudada na competência artística e no patriotismo.
Apoio exterior, não existe. Os amadores opulentos, que eram amigos verdadeiros da música, desapareceram, e com eles as festas e saraus que davam. José Carlos O’Neill, visconde d’Oliveira Duarte e conde Daupias foram arrebatados ao culto da arte pela morte, invejosa do prestígio com que eles se iam imortalizando, e ciosa do encanto com que eles tornavam este mundo um paraíso. Os que ficaram e os que lhes sucederam trilham outras veredas em que a Música se não faz ouvir. Os governos não têm tido tempo de se ocuparem desta bela arte, como ela o merece, arrancando-a do descrédito em que ela caiu mercê do singular preconceito de que as belas artes são um luxo educativo!...
E assim ficam os professores do Conservatório de Lisboa, ganhando menos do que os amanuenses da sua própria escola, e menos do que os cozinheiros e porteiros de qualquer casa rica. O Porto continua sem Conservatório de Música. As câmaras municipais só não ousam subsidiar orquestras nacionais para concertos clássicos, E fazem bem, porque se têm concentrado, como toda a gente sabe, no desenvolvimento das obras e do pessoal da limpeza e da canalização do gás e dos esgotos, que estão por isto no estado perfeito e odorífero de todos conhecido.
Os particulares modestos, e só esses, continuaram porfiando. Rey Colaço, o pianista cada vez mais perfeito, prossegue intemeratamente no cultivo da Arte pura, apesar de ter a felicidade de ser professor no Conservatório com o ordenado que sabemos.
A elevação dos seus programas e a supremacia da sua execução nos concertos, colocam-no em primeiro lugar entre os beneméritos da Arte em Portugal. Fica bem ao lado dele, Bernardo Moreira de Sá, o prestigioso violinista que é a alma da vida musical no Porto, onde tem sabido implantar e generalizar o gosto, o respeito e o culto pela música clássica.
A Real Associação de Música não trepidou ainda no empenho nobilíssimo do seu programa inicial. E os seus concertos – em que talvez tenha entrado mais elemento estrangeiro do que seria mister – provam não só a competência dos seus sócios, mas também a elevação do ensino musical, que ela sustenta com os seus próprios fundos.
A Escola de Música de Câmara, que é uma associação de amadores com o título mal cabido, continua a série de esforços com que o sr. Miguel Ângelo Lambertini e os seus amigos têm forcejeado por levantar o nível da Arte em Portugal, quer facilitando generosamente a audição pública e gratuita de artistas e de quartetos nacionais e estrangeiros, quer tocando eles mesmos a música de câmara que lhes parece mais adequada.
Por outro lado, o sr. António Santos, o activo e enérgico empresário do Coliseu, inaugurou no ano passado a época lírica no Coliseu dos Recreios, facultando a preços cómodos a audição das óperas mais em voga, sem as importâncias de luxo de S. Carlos. Folgamos de registar o facto da sua preferência pelos artistas nacionais; e estimamos louvá-lo em breve pela sua protecção definitiva à Arte musical, dando lugar aos maestros portugueses – que ainda os temos – e às óperas portuguesas, que não valem menos que as estrangeiras.
Tais são as manifestações visíveis – visíveis pelo menos a quem chega de fora – quanto à música em Portugal, abstraindo das tunas, que apenas agora se formaram, e do teatro de S. Carlos, onde se representa o D. João de Mozart, como se viu há pouco…
Quais são as características desta situação anormal?