2/01/2006

Contra factos, afinal há argumentos

Va scorrendo, va ronzando,
Nelle orecchie della gente
S'introduce destramente,
E le teste ed i cervelli
Fa stordire e fa gonfiar.

Canta-o o Basilio do Barbero: La calunnia è un venticello… A estreia da ópera realizou-se em 1816, ou seja seis anos antes da estadia de Rossini em Viena. Servindo-se da influência de Salieri, conseguiu visitar Beethoven. Este, ao ver os dois italianos, teria dito qualquer cosa como “mas, o que é que está vocé a fazer junto ao assassino de Mozart?”. Nos anos 20 a calúnia circulava por Viena, inclusive em folhas soltas. Depois, em 1830, Pushkin transformou a calúnia em teatro nesta intragável cena melodramática.

Os dados que contrariam a tese do envenenamento de Mozart são numerosos. Alguns estão reunidos neste bem-humorado artigo, cuja leitura se recomenda, do brilhante Albert Borowitz (vale a pena dar também uma vista de olhos no resto dos textos aqui reunidos: o conselho é para quem goste como eu dos crimes de ficção).

O argumento mais contundente dos referidos nesse artigo é, sem dúvida, o de um musicólogo soviético que confirmou a culpabilidade de Salieri invocando um documento que Guido Adler, considerado o fundador da musicologia académica, teria mostrado ao seu professor na Rússia, Boris Asafiev, e do qual não há – por supuesto – rasto. Musicologia histórica no seu melhor.

Há uma segunda tese – também recolhida por Borowitz – que é a do assassínio de Mozart em mãos da maçonaria em castigo por ter desvendado alguns dos seus segredos rituais na Flauta Mágica. Foi uma invenção da musicologia nazi.

Outra questão fulcral é a do tempo que fazia no dia do funeral de Mozart. Chuva, neve, um frio de rachar… É por isso que, como se sabe, a sua leviana Costanza não assistiu. Infelizmente para os amantes da boa literatura romântica, o musicólogo Nicolas Slonimsky estragou a história ao ter procurado (e encontrado) a informação meteorológica desse dia: média de três graus e vento de leste fraco. O seu artigo foi publicado em The Musical Quarterly em 1960. Afinal, no último dia em que o corpo de Mozart esteve sobre a terra soprou um soave vento…

Os boatos sobre a morte de Mozart estão resumidos aqui. E quem goste de ver boas histórias estragadas, pode ler este artigo de Peter Brown, onde são assinalados alguns dos numerosos erros históricos do filme de Milos Forman.

Andei nestes dias entretida a ler estas coisas, mas o meu propósito não era lembrar os factos documentados relativos à morte de Mozart. Tratava-se, antes, de resumir o que se pode ler a propósito de Amadeus nas revistas de musicologia.

Houve, claro está, grande escândalo pela notável ausência de rigor histórico no filme. Também houve optimistas que viram nele uma forma de divulgação que, em última análise, só podia ser benéfico para a música clássica em geral (e para os professores de história da música em particular). Mas eu prezo particularmente um outro trabalho, publicado em The Musical Quarterly em 1992. Assinado por Joseph Horowitz (descrito por Greg Sandow como “activist scholar”, autor, entre outras monografias, de Wagner Nights: An American History e de The Post-Classical Predicament: Essays on Music and Society), o seu título é “Mozart as Midcult: Mass Snob Appeal” e começa assim:

“Mozart, who died poor, was ever a fallible self-promoter. His actual life, his actual music, while not unappealing, mainly interested a cultivated elite. It took Peter Shaffer, two centuries later, to make Mozart irrestible to millions of classical-music novices."

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