A (longa) entrevista, que transcrevo a seguir (contrariando todas as regras editoriais dos bons blogs), não faz justiça à vivacidade do entrevistado. E, obviamente, também não dá conta da sua arte como pianista. Fica aqui como lembrança e, sobretudo, como homenagem pelos seus trinta anos de carreira: três décadas, das quais tenho acompanhado quase duas, marcadas pela seriedade e pela paixão pelo piano e repletas de momentos mágicos e de interpretações magistrais.
António Rosado ou a música como razão de existir
Como lembra as suas primeiras experiências musicais?
A minha primeira experiência musical deve datar do útero. Na minha casa sempre houve música. Esta acabou por ser uma não escolha para mim, porque fez sempre parte do meu ambiente. Sempre esteve perto de mim, de uma forma naturalíssima, e, até hoje, nunca se me pôs a questão de eu poder ter feito qualquer coisa diferente.
Sempre teve o mesmo significado para si?
Com a idade a música vai representando coisas diferentes. Começou por ser uma brincadeira, depois passou a ser uma coisa mais séria e hoje é a minha razão profissional, e não só, a minba razão de existir. As coisas vão evoluindo, não a música: somos nós os que vamos evoluindo relativamente à música.
Estudou, portanto, com o seu pai…
Sim, a minha introdução à música foi caseira, cem por cento caseira… O meu pai e o meu avô eram acordeonistas profissionais e eu próprio comecei a tocar o acordeão quando tinha três anos.
Confrontou alguma vez algum tipo de preconceito relativo a esse instrumento quando entrou para o Conservatório?
O acordeão é um instrumento muito ligado à música popular, mas, no meu caso, desde muito cedo abordei um tipo de repertório erudito. Há uma disciplina ligada ao acordeão, que pouca gente conhece, de música clássica, por assim dizer, com um repertório formado por obras escritas expressamente para ele e por transcrições de peças pensadas para outros instrumentos. Toda a minha actividade como acordeonista, em concertos e concursos internacionais, foi feita com base nesse tipo de repertório. Não tem muito a ver com o instrumento popular. A mudança para mim não foi, portanto, tão radical. Houve até obras que cheguei a trabalhar nos dois instrumentos em fases diferentes da minha vida. É, porém, certo que o piano tem o repertório inesgotável.
Durante quanto tempo conciliou o acordeão e o piano?
Toquei os dois instrumentos entre os 10 e os 15 anos, quando acabei por me decidir pelo piano.
O seu talento para a música fez de si uma criança diferente?
É claro que não brinquei tanto como os outros. Tocando dois instrumentos diferentes, mais a escola, o tempo era pouco. Mas esse foi o único entrave que encontrei.
E como se decidiu pelo piano?
O piano surgiu por acaso. Quando fui para o conservatório, aqui em Lisboa, achei que era o instrumento mais generalista, o que melhor servia para outras disciplinas, tais como a composição ou a análise. Não gostava mais dele do que dos restantes.
Em que é que o acordeão lhe ajudou no desenvolvimento da sua carreira?
Deu-me uma preparação sem a qual não teria evoluído tão rapidamente no início dos meus estudos no Conservatório, tanto no sentido musical, como no sentido físico. A passagem, do ponto de vista técnico, foi muito mais fácil do que teria sido se eu tivesse vindo de um outro tipo de instrumento. No meu primeiro ano consegui concluir o quarto ano de piano, e, por conselho de Gilberta Paiva, a minha professora, tentei avançar o mais rapidamente possível até ao final do curso superior por forma de aproveitar uma idade viável para poder partir para outras experiências, nomeadamente no estrangeiro. Ela aproveitou o facto de ter chegado às suas mãos com um nível técnico mais avançado do normal e incentivo-me a acumular cadeiras e a acabar o curso muito rapidamente.
Imagino que, para além da agilidade técnica, conservou também, como mais valia, a sua experiência do palco, não?
Essa é, com efeito, uma coisa importantíssima. Habituei-me desde sempre ao palco. Lembro-me que em criança tocar em público era para mim uma alegria enorme. Depois, quando cheguei ao Conservatório, enquanto muitos dos meus colegas ficavam aflitos na época das audições, para mim, ao contrário, era um prazer. Era no palco que eu me sentia bem e, isto, claro está, foi uma vantagem enorme.
Tem alguma lembrança especial dessas suas primeiras apresentações públicas?
Digo isto com uma grande saudade, mas não houve uma vez que fosse realmente diferente das outras. Como digo, ia para o palco com alegria e sentia-me ali optimamente. Era onde eu me ultrapassava relativamente ao que estava previsto fazer e ao que tinha estudado. Agora é que é um pouco diferente…
Referiu antes de Gilberta Paiva, a sua professora, alguém marcante no seu percurso…
É alguém por quem guardo a melhor estima e cada vez mais, porque mais o tempo passa e melhor entendo determinadas coisas. Estima, não só pelo seu valor, mas também pelo que me ensinou, pelo empenho que pôs nesse ensinamento durante vários anos e pela visão que teve, na medida em que, no lugar de aproveitar um bom aluno como trunfo, tentou o rapidamente que entrasse num circuito que me obrigasse a prosseguir os meus estudos em outros níveis. Foi aluna de Marcos Garin, um pianista que pertence à mesma geração que José Viana da Mota. Chegou a ter alguma actividade concertística, atingindo um certo sucesso, mas acabou por se dedicar ao ensino, tornando-se numa das maiores formadoras de escola do nosso país. Foi também uma grande lutadora, algumas de cujas obras ainda subsistem. O seu era um tipo de ensinamento muitíssimo sólido. Tinha um empenho, uma dedicação, que chegava por vezes à severidade e que me permitiu ultrapassar todas as dificuldades no Conservatório.
Acha que os programas oficiais podem ser um obstáculo para o desenvolvimento de alunos mais talentosos?
Há idades para tudo é certo que as crianças têm uma facilidade para aprender que perdem com os anos. Mas, no Conservatório, mais grave do que os programas oficiais, é o amadorismo de muitos alunos, uma consequência do medo que têm de enveredar por uma carreira profissional exclusivamente ligada à música. Porém, sem dúvida, quem aspirar a uma carreira mais ambiciosa deve poder tocar determinadas coisas muito cedo.
Em 1978 conheceu Aldo Ciccolini…
Pois foi. No verão desse ano encontrei Ciccolini nos Cursos de Verão do Estoril. Houve logo uma grande empatia pessoal entre nós e combinámos que, no caso de eu concluir o curso superior no ano seguinte, me receberia em Paris como aluno. E assim aconteceu.
Ele disse-me numa entrevista que você é o seu aluno preferido…
Ele é muito simpático… Embora talvez não o tenha dito apenas por ser simpático, porque então ele deveria dizer isso das dezenas, senão centenas, de alunos que já estudaram com ele… Já tem afirmado isso em outras ocasiões e, embora me deixe sempre um pouco embaraçado, é certamente para mim um motivo de orgulho.
Em que é que se baseou a vossa empatia?
Houve, claro está razões puramente musico-instrumentais. Ainda me lembro do recital que deu naquele verão no Teatro São Luiz, para mim, então um miúdo, foi como se o seu piano fosse um instrumento completamente diferente àquilo que eu tinha estado a escutar até aquela altura. O seu pianismo, a sua qualidade sonora, o cuidado que dava ao detalhe… tudo era para mim novo e diferente. O nosso entendimento tem a ver também com o facto de eu ter ficado sob a aprendizagem dele durante um período de tempo muito longo. Fui o seu aluno regular durante cerca de dez anos. Agora não sei qual é a moda, mas na altura era habitual assistir às aulas de muitos pianistas, de andar a saltitar de professor em professor. Eu, como sentia que continuava aprender nas suas aulas, embora tivesse assistido a “master-classes” com outros, não tive a necessidade de parar. Imagino que isso foi também satisfatório para ele enquanto professor.
Em que aspectos foi a influência de Ciccolini especialmente marcante para si?
Uma das coisas nas quais ele me ajudou imenso foi na construção dos programas. Por vezes, cai-se na tentação de tocar uma peça apenas porque se gosta dela, ou porque é difícil, ou porque está na moda. Um programa deve ser encarado como um todo que deve fazer sentido, que deve ter uma razão de ser, coerência e um significado próprio. De resto, as aulas com Aldo Ciccolini dependiam muito do tipo de aluno, e, portanto, tanto podiam ser enfadonhas, como apaixonantes. Digo isto com conhecimento de causa, porque era dos únicos alunos que sempre que podia ficava a tarde toda a escutar os meus colegas. Sempre pensei que aprendia mais assim do que sendo eu a tocar: estamos mais disponíveis para perceber tudo. Sendo ele uma pessoa extremamente liberal e muito aprazível – foram raras as vezes em que o vi zangado durante as aulas –, o que ele fazia sempre era esperar e deixar mostrar ao aluno a sua personalidade. Tudo o que ele dizia era sempre pertinente e, mesmo que ele não falasse, bastava que pusesse as mãos no teclado para nos deixar boquiabertos.
Lembra-se dalguma aula em particular?
Houve uma coisa que me fez perceber que eu não era para ele um aluno indiferente. Ele dá muita importância às dedilhações e, uma vez, teve a paciência de escrever, pensando-a especialmente para mim, divertidíssimo, a dedilhação de quase todas as notas de uma peça que tem, aliás, muitas notas: a “Triana”, de Albéniz. Entretanto perdi essa partitura, mas conservo a dedilhação na memória. Passados estes anos, eu próprio acho que, quer na organização da interpretação, quer em questões de sonoridade ou puramente físicas, a dedilhação é fulcral na interpretação pianística. É através da dedilhação que podemos reconhecer os grandes pianistas.
Refere-se também às edições, não?
Sim, obviamente. Por vezes dou comigo a criticar as dedilhações que se encontram nas edições normais, as que trabalhamos habitualmente. Estava a tocar agora uma obra de Liszt, com uma dedilhação dele que foi transmitida através de um dos seus alunos, que é admirável. Quem diz Liszt, diz, por exemplo, Busoni, cujas edições apresentam dedilhações muito inteligentes. Cada pianista tem as suas mãos – Busoni tinha as mãos enormes, e é claro que as suas dedilhações não podem ser as mesmas que as de Alicia de Larrocha, que têm as mãos pequenas – mas mesmo assim, pode se aproveitar a imaginação e, como digo, a inteligência de determinadas dedilhações. Esta questão talvez pareça lateral ou menos interessante para o público melómano, mas, como digo, é fundamental no piano.
Liszt, Schumann, Debussy, Prokofiev, Mozart, Brahms…, estes são alguns dos compositores que tem trabalhado regularmente, mas este ano gravou a seis sonatas de Fernando Lopes-Graça. Como viveu esta experiência?
Uma boa parte do meu repertório, das obras que tenho estudado, nunca tem sido escutada em sala de concerto. É preciso aproveitar as ocasiões e eu tenho tido a sorte de receber propostas interessantes. Entre elas, conta-se a gravação das sonatas do Lopes-Graça, que veio pela mão do Dr. Manuel Dias da Fonseca em nome da Câmara Municipal de Matosinhos. Eu já tinha tocado algumas coisas de Lopes-Graça, mas não conhecia essas obras. São peças muito difíceis, muito complexas e o pedido veio no meio de uma fase de muito trabalho. Preparei vários concertos na Festa da Música deste ano e, ainda, em Maio, gravei o segundo concerto de Brahms com a Orquestra Nacional do Porto. Ainda por cima, eu não estava de todo habituado à linguagem do Lopes-Graça, que é muito pessoal – por vezes rude – e que pede muito do ouvinte. Fiquei, portanto, um pouco assustado…
São aliás muito diferentes entre si…
Acho que a terceira é muito bartokiana. Ele tinha uma especial predilecção por ela. As duas últimas são obras de maturidade, onde se reconhece o estilo do compositor. Por exemplo, a segunda, que data de Paris, é a mais latina das seis. Sente-se, contudo, a importância que o ritmo tem nelas, a sua força e o seu rigor.
Mas o resultado foi muito bom…
Estou bastante contente. Devo dizer que acabei por ficar entusiasmado, mais do que eu nunca teria imaginado. São raros os compositores portugueses que escreveram sonatas, praticamente apenas Bomtempo antes de Lopes-Graça, e as seis peças nunca tinham sido gravadas por uma só pessoa. Além do interesse que todas elas têm por si próprias e mostram a evolução do compositor ao longo do tempo. Ele sabia o que escrevia. Conhecia muito bem o teclado e punha na partitura exactamente o que queria, sem fazer nunca nenhuma cedência. Da parte do intérprete, do ponto de vista instrumental, há passagens terríveis, mas também admiráveis. É comparável a coisas que encontramos nas obras de Prokofiev: de repente, aparecem trechos que fazem levar as mãos à cabeça.
Como é que encara esse lado “inesgotável”, na sua expressão, do repertório pianístico?
Acho que a primeira motivação dos pianistas quando começam é tocar o melhor possível e, se possível, tocar tudo. Mas, depois, há uma segunda fase, que é a da descoberta de obras que nos interessam pessoalmente, que reflectem aquilo que nós somos e que nos dão coisas novas para descobrir. São muito importante as escolhas que vamos fazendo, porque se torna logo evidente que, por muito que trabalhemos, nunca chegaremos ao fim. Mas é também fundamental o contrário: voltar a tocar coisas já estudadas… Isso está a se tornar agora para mim a parte mais apaixonante da minha profissão. Há uma ideia estendida entre as pessoas que gostam de música, mas que não têm estudado nenhum instrumento, que é a de, quando estudas e tocas uma peça, ela fica, que, depois, é só voltar a tocar quando for preciso. Nada há de mais falso, novas dificuldades vão sendo encontradas à medida que o tempo passa. As obras amadurecem na nossa cabeça e isso faz variar a nossa abordagem. Quando voltamos a elas, é preciso voltar a pôr tudo em causa.
Há alguma obra em particular com a qual lhe tenha acontecido isso de forma mais notória?
Acontece-me recorrentemente. No entanto, há uma obra da qual gosto muito, a primeira sonata de Enesco, que tem sido para mim uma experiência particular. Gravei-a há cerca de vinte anos. Com o passar do tempo, voltei a tocá-la e encontrei lá coisas que tinha ignorado da primeira vez. Não é uma obra conhecida do grande público, mas, da minha parte, seria capaz de inclui-la em todos os meus programas, porque é uma música que não me canso de tocar. Pelo contrário, há compositores – por exemplo, Rachmaninov – em cuja obra se entra apaixonadíssimo, mas que acabam por enjoar.
Essas novidades são coisas que, com passar do tempo, o pianista consegue pôr na partitura?
Talvez seja ao contrário. Elas sempre estiveram lá: somos nós que não as vemos…
Tem sentido alguma vez como um problema o facto de, no passado, lhe terem colado a etiqueta do “técnico e virtuoso”, uma espécie de “Liszt Português”?
Bom, quanto ao último, não me importava de o ser… Mas quanto a me porem etiquetas, nem me importo, nem me deixo de importar. Trabalho muito e estou muito concentrado no meu trabalho, e, além disso, o meu repertório vai muito para além das peças apenas virtuosísticas. São coisas que me ultrapassam.