Há dias que tenho a intenção de escrever aqui alguma coisa a propósito do livro de Esteban Buch sobre a nona sinfonia recentemente lançado pela Terramar. O Sérgio Azevedo - bem vindo seja a este blogue que é o seu :-) - perguntou a minha opinião sobre este estudo em comentário ao post sobre a “Nona de Furtwängler” gravada no dia do aniversário de Hitler em 1942, mas acabei por não responder porque pretendia dedicar um pouco de tempo ao assunto: o melhor é inimigo do óptimo…
Li o livro há três anos, quando saiu em inglês, e na altura achei fascinante. Buch é um daqueles autores que consegue o difícil equilíbrio entre a exaustividade académica e a agilidade do estilo. Em cada página se revela a sua impressionante imaginação, fazendo com que todas as fontes que utiliza se tornem pertinentes e reveladoras, inclusive (pelo menos assim me parece) para leitores pouco treinados na leitura de obras de temática musicológica.
No que diz respeito ao século XX, e para além da análise dos avatares da obra a partir da ascensão do nazismo até à queda do muro de Berlim, Esteban Buch analisa em detalhe as comemorações do centenário da morte de Beethoven, ocorridas em Viena em 1927. Este capítulo é, talvez, o mais interessante e inovador do livro porque, apesar de ser um episódio aparentemente marginal, pode ser considerado o campo no qual Beethoven “perde”, nem que seja transitoriamente, a sua assimilação por parte do modernismo. O principal organizador dessas comemorações foi Guido Adler, um dos fundadores da musicologia moderna, amigo de Schoenberg e professor de Anton Webern na Universidade de Viena.
O capítulo é, entre outras coisas, interessante porque é aquele que permite estabelecer ligações com a recepção portuguesa de Beethoven, a partir da presença no mesmo, como delegado, do pianista e compositor José Viana da Mota. Este facto é apenas referido de forma implícita, ao qualificar de menores e de conservadores os compositores que intervieram no programa. Faz pensar no significado de que, nesse foro, Viana da Mota se referisse às, na altura, mais recentes obras de Freitas Branco nos seguintes termos: “Só hoje começa a aparecer certa tendência para um neoclassicismo Beethoveniano nas obras de Luís de Freitas Branco. Acentua ele a tendência da geração actual contrária ao impressionismo e orientalismo inorgânico e enervante a favor do espírito ocidental mais severo de Beethoven. Para criar obras organicamente construídas, de grandes linhas, acha ele necessário regressar à forma Beethoveniana como base, conquanto modernize a expressão. As suas sinfonias seguem exactamente o plano Beethoveniano admitindo a relação dos temas entre si como deduzidos por analogia e por contraste.”
Na mesma conferência, Viena da Mota afirma ter sido ele o primeiro a escrever Portugal uma sinfonia em que se “empregou entre nós, rigorosamente, a forma Beethoveniana”: depois, dedicou-se ao “género nacionalista”.
O legado do culto beethoveniano passou directamente para Fernando Lopes-Graça, pelo que devemos tentar olhar (na perspectiva da história da música em Portugal, claro está: esta discussão não deve ter grande interesse para a composição hoje) para além da apreensão que produz a antiquada retórica de Viana da Mota patente neste excerto. Lopes-Graça, porém, foi bastante crítico em relação à utilização da “grande tradição musical germânica” como propaganda política através das digressões europeias de maestros e orquestras alemãs durante o nazismo (por exemplo, a da Filarmónica de Berlim a Lisboa nos primeiros anos da década de 40).