A tragédia final da Sonata a Kreutzer, a novela de Tolstoi, é provocada pela audição da Sonata op. 47, de Beethoven. Pózdnyshev, a personagem protagonista, sofre a incongruência entre a experiência interna produzida pela sua audição e as circunstâncias marcadas pelos convencionalismos burgueses, “entre damas decotadas”, onde era habitualmente tocada e escutada. A música, diz ele, induz o ouvinte num estado indefinido, desatando uma energia de emoções incontroláveis que não podem ser imediatamente traduzidas na acção.
A rememoração do momento fatal da execução da peça de Beethoven conclui, no texto, com uma desistência. Descrevê-la verbalmente é um esforço penoso:
Ela sentou-se com um ar de falsidade defronte do piano e começaram então os preliminares usuais, os pizzicati no violino e o arranjo das partituras. Lembro como um olhou para o outro e como lançaram outra olhadela para a audiência, que estava a tomar assento. Disseram-se algumas palavras e a música começou. Tocaram a Sonata a Kreutzer, de Beethoven. Conhece o primeiro presto? Conhece-o? Ah!
Tolstoi condena na sua obra a instituição do matrimónio e as miragens do amor físico, defendendo a virtude da castidade.
Beethoven escreveu a partitura desta sonata, que acabou sendo dedicada a Rodolphe Kreutzer, na Primavera de 1803. Consta que o compositor se zangou com o primeiro dedicatário da obra por causa de uma mulher. Pelo menos, isso foi o que contava George Augustus Polgreen Bridgetower, o violinista para o qual foi escrita e que a tocou na estreia. Na sua memória, ficou marcada a forma “casta” como Beethoven interpretava o segundo andamento.
É célebre a introdução do vigoroso Presto que deixou sem palavras ao infeliz conselheiro Pózdnyshev. Essa misteriosa introdução pode fazer lembrar o momento da Criação, a oratória de Haydn, em que se festeja no Jardim do Éden as primeiras horas de felicidade partilhadas por Adão e Eva. Precede o duetto em que ambos declaram seu amor mútuo. Nesse recitativo opõem-se representações musicais do masculino e do feminino: a decisão (triádica e cadencial) de Adão à sedução (harmonicamente ambígua e muito ornamentada, reminiscência do Caos e inquietante antecipação da Queda) de Eva. Beethoven inverte a ordem.
Quanto ao terceiro andamento, esse tem sido descrito com a expressão “diálogo impossível”.
Já no século XX, Leos Janáček escreveu o seu Trio com piano “Sonata Kreutzer” (posteriormente transformado em quarteto) duplamente inspirado por Beethoven e por Tolstoi, num dos períodos mais intensos e prolíficos da sua vida. Publicamente celebrado como compositor, tinha-se apaixonado poucos anos antes por Kamilla Stosslova, a musa que, entre outras obras, inspirou a partitura da ópera Katya Kabanová. Os dois quartetos de Janáček, o mencionado “Sonata Kreutzer” e aquele que leva o sobrenome de “Cartas Íntimas”, ambos da década de 20, tiveram também como dedicatária ideal a Kamilla Stosslova.
A foto foi tirada da página do Museu e Arquivo Janáček.
A Sonata "A Kreutzer", de Beethoven, será uma das peças que Hilary Hahn tocará em Valencia e em Lisboa, respectivamente nos dias 10 e 19 de Maio. O programa inicia-se precisamente com uma obra de Janáček, concluída na época em que estava a escrever Katya Kabanová: a Sonata para violino e piano.