4/04/2007

Primavera finlandesa

Talvez seja porque, à beira do Ebro, estamos desfrutando de uma Primavera com temperaturas finlandesas. Voltei a escutar estes dias o CD dedicado a Sibelius que Soile Isokoski lançou em 2006 (e que teve críticas tao boas como esta). E reparei que, apesar dos redondos 50 anos que em 2007 passam sobre o seu falecimento, não se fala muito sobre esse compositor. Mas, se calhar, sou eu que ando distraída. Uma das peças incluídas no CD é o célebre poema sinfónico intitulado Luonnotar, inspirado num dos cantos do Kalevala. Foi também gravado há tempos pela BIS, numa outra excelente interpretação de Mari Anne Haggander, um bocadinho mais arrebatada do que a de Isokoski.

Luonnotar, virgem e filha do ar, lançou-se ao mar e ali ficou enchida pelo vento durante sete séculos, durante os quais nadou por todos os océanos. Pediu então ajuda a Ukko, o deus supremo, para poder dar à luz, após uma longa gravidez de água e de ar. Um magnífico pássaro posou-se sobre as suas pernas e fez nelas o seu ninho, com seis ovos de ouro e mais um de ferro. Os ovos cairam no mar e deles brotou a Terra com o seu Céu, a Lua e o Sol. A virgen Luonnotar permaneceu na água mais dez anos. Criou depois a vida na Terra, as ilhas e os continentes. Trinta anos mais tarde, finalmente viu nascer o seu filho, o já velho, sábio e vigoroso, Väinaämöinen. Mas este caiu no mar e ficou junto da sua mãe durante mais oito anos. Pôs então, pela primeira vez, pé em terra firme e pode finalmente admirar o mundo que a sua mãe tinha criado.


Sibelius cultivou indistintamente a sinfonia e o poema sinfónico. Enquanto no primeiro sempre procurou preservar “a severidade e o estilo, assim como a profunda lógica que permite criar a conexão íntima entre todos os motivos”, no segundo, encontrou uma via para se libertar do peso da tradição. No entanto, sobretudo a partir da quarta sinfonia, o compositor acabou por fusionar nas suas obras ambas as tendências, tentando fazer com que as suas composições dependessem menos dos esquemas tradicionais do que da lógica não sistemática ou intuitiva inerente aos materiais escolhidos: as suas peças, nas suas palavras, crescem paulatinamente através de transformações motívicas espontâneas cuja fixação ou “cristalização” é comparável às estruturas microscópicas do gelo. Isto pode explicar que, na discussão em termos formais dos seus poemas sinfónicos, todos os autores coincidam em procurar formas de sonata, o padrão formal característico do género sinfonia. Contudo, todos eles coincidem também em sublinhar as notáveis novidades introduzidas pelo compositor, sobretudo do ponto de vista do plano armónico. Em Luonnotar tem sido identificado esse tipo de esquema tripartito, coincidente com o conteúdo do poema cantado pela solista e que é susceptível de ser estruturado numa forma de sonata livre. Contudo, conforme assinala Erik Tawaststjrna, elementos tais como o uso dos intervalos de segunda maior e e de segunda menor como elemento ao mesmo tempo estrutural e colorístico, ou como a orquestração, de carácter camerístico, conferem à obra uma notável “modernidade”.

A parte vocal apresenta dois tipos de carácter, um épico e um outro mágico e misterioso. Na primeira parte, opõe-se a narração de Luonnotar ao seu lamento, perdida nas conturbadas águas. A secção intermédia – a qual coincidiria com o desenvolvimento – evoca a luta da Filha do Mar que conduz, já na Reprise, ao momento climático da peça. Este é também um dos trechos mais emocionantes e intensos de toda a música de Sibelius. Esta terceira secção apresenta ainda uma evidente tensão harmónica, coincidente no texto com o momento da Criação. O anticlimático final da obra, porém, faz pensar mais no seu mistério do que na sua grandiosidade.