4/11/2007

Primavera

Na cabeça
um canteiro de flores
a fabricar um cauto oceano;
puxado pelo fragor do sol
o sangue esbarra
de encontro ao esterno
(último paciente no consultório
olha já o poente
e sonha com laranjas apunhaladas
no açúcar das ervas rentes).

Que secreto e suicida engano deixo
entrar pelas narinas?

A pele é um passeio breve
sob a lã do firmamento
desde o rio subindo
desde o prado descendo.

Como escondê-lo?
a Primavera bate-me
sonora e claramente à porta,
afaga-me o cabelo
com mão infanticida,
senta-me no seu colo
e fende-me aos poucos
a garganta,
de sorte que me olho desde as papoilas
de Monet, ou desde a terra dos meus avós (que importa?)
e é tudo
o mesmo sangue a prumo.

Rui Lage, Berçário, 2004