1/30/2005

As amizades de Beethoven

Hoje, no PÚBLICO, é lembrada a importância que teve Czerny na «codificação», por assim dizer, do «correcto» estilo interpretativo da obra pianística de Beethoven. Casualmente - nem por isso: lecciono uma cadeira que se chama História da Música do século XIX e também estou a preparar umas conferências sobre o assunto... - andei a ler há duas o três semanas uma interessante monografia da autoria de George Barth, intitulada The pianist as orator : Beethoven and the transformation of keyboard style (Ithaca ; London : Cornell University Press, 1992).

De forma resumida, o que o autor propõe é que Czerny foi o responsável por uma mudança radical do estilo pianístico que teve a obra de Beethoven como fundamento, mas acha que essa mudança implicou também uma «má compreensão» do que constituía a essência do estilo interpretativo do seu mestre. Barth defende que o estilo interpretativo de Beethoven estava muito mais próximo da tradição da retórica (livre do ponto de vista rítmico e variada do ponto de vista métrico, gestual e declamada) e que Czerny impôs um tipo de regularidade métrica e uma contenção (para alguns, frieza) expressiva que, tendo feito escola, contrariava o estilo beethoveniano.

Barth «reabilita» em certa medida a figura de Schindler, bastante questionada por causa dos seus excessos imaginativos, em parte explicados pela sua condição de «viúvo» do compositor (Czerny teria sido outro desses «viúvos»). Precisamente, é a liberdade da declamação aquilo que Schindler admira no estilo de Beethoven e cuja ausência critica no estilo interpretativo de Czerny. Este chegou, por exemplo, a editar sonatas de Beethoven com alterações que mudam completamente a organização e a intenção dos motivos tal como estes se apresentam nos autógrafos e nas edições originais, omitindo as ligaduras mais breves e traçando grandes ligaduras que marcam grandes temas e, sobretudo, a regularidade métrica imposta pelo compasso. Esta nova ênfase dada à regularidade métrica liga-se à difusão do metrónomo.

Obviamente, a sua maneira de ver as coisas relaciona-se também com a imposição no século XIX (a partir da década de 20) do piano inglês, mais pesado, e que não contou com uma total adesão por parte de Beethoven. Ou melhor, o compositor interessou-se tanto pelos pianos ingleses como pelos vienenses – ligando cada tipo a escritas e estilos interpretativos diferentes – mas, conforme lembra Barth, sempre destacou a sua preferência pela ligeireza e a sensibilidade dos pianos vienenses.

Já agora, cabe lembrar -a propósito dos pianos ingleses - a admiração que Beethoven sentia por Clementi, uma figura central da denominada «London Pianoforte School». A sua influência revela-se em muitas obras do compositor alemão, como há anos (em 1970!!) foi demonstrado por Alexander L. Ringer, um dos maiores musicólogos do século XX (também é de 1970 o artigo de William Newman sobre os pianos de Beethoven e os seus «Piano ideals», publicado no Journal of the American Musicological Society). Ainda, Clementi, para além de ter sido objecto de uma monografia da autoria do reputado Leon Plantinga, também tem sido objecto da atenção de vários pianistas italianos que, nos últimos anos têm gravado muitas das suas obras, quer em instrumentos originais, quer em instrumentos modernos.