1/28/2005

Valentim Berlinsky

Nestes dias, a presença em Lisboa e Barcelona do lendário Quarteto Borodin e a proximidade das comemorações do centenário de Shostakovich fizeram-me pensar na entrevista que tive a sorte de fazer, há alguns anos e para Mundo Clasico, a Valentim Berlinsky, o violoncelista fundador dos Borodin. Actuou de tradutor o pianista do Moscow Piano Quartet, Alexei Eremine, que foi aluno de música de câmara de Berlinsky em Moscovo (o MPQ tem há vários anos uma temporada própria de concertos em Cascais, patrocinada pela Câmara Municipal, pelo que Alexei fala muito bem português).

Berlinsky – um russo à antiga – impressionou-me de forma durável. É mais para o franzino, ia vestido de forma confortável, ao estilo inglês, e permaneceu toda a entrevista com a cara apoiada sobre a mesma mão com que segurava um cigarro. Ali, na sua cara escondida atrás dos dedos e do fumo do tabaco, brilhava um dos olhares mais penetrantes que tenho encontrado na minha vida. Falámos sobre Shostakovich, claro está, e sobre as lágrimas que o compositor podia deixar cair em silêncio durante as audições privadas dos seus quartetos, executados, entre outros agrupamentos, pelos Borodin. Imaginem uma sala pequena, onde ninguém se move e só se chora, repleta de amigos chegados e de fantasmas.

A musicologia anglosaxónica anda há vários anos (como se pode verificar na exaustiva cronologia disponível no site Music under Soviet rule: Shostakovichiana, no link «The Shostakovich Debate») a tentar decidir se Shostakovich foi ou não foi um dissidente. Apesar da admiração que sinto por Richard Taruskin – grande crítico das opções de Shostakovich, mas também um dos mais influentes musicólogos de hoje, autor da recente história da música da Oxford University Press à qual voltarei de aqui por uns dias –, não consigo evitar uma certa revolta perante a exigência de heroísmo a alguém que viveu, demasiado perto, a loucura do estalinismo.