A vitalidade criativa dos compositores e compositoras portugueses está a fazer ultimamente com que, cada vez de forma mais regular, as novas obras se estejam a impor na programação de muitas salas portuguesas e com que novas vias para a sua difusão apareçam. Esta “revolução”, nas palavras do compositor João Madureira citadas nas páginas deste jornal, num artigo assinado por Cristina Fernandes, prende-se com mudanças que podem ser identificadas em todo o mundo ocidental, cuja descrição e análise mereceria eventualmente um estudo demorado neste jornal, mas tem também a ver com a realidade especificamente portuguesa. A seguinte comparação é esclarecedora: por exemplo, em Espanha não se verifica, nem adoptando o olhar mais optimista, nem o dinamismo, nem, sobretudo, a articulação de esforços que se evidencia em Portugal na produção musical mais recente.
Contudo, continuam a ser ouvidas as vozes daqueles que continuam presos a uma ideia da cultura, apoiada maioritariamente pelo Estado, onde pouco espaço resta à iniciativa individual e privada, e, mesmo, à imaginação. Não é que neste artigo se pretenda afirmar, ou nem sequer insinuar, que o Estado não tem responsabilidades nesta matéria, como alguns corifeus da direita têm vindo a afirmar nos últimos tempos com prazer não dissimulado. Antes pelo contrário, trata-se de assinalar as omissões e fraquezas de um discurso simplista que vê, numa amostra muito parcial de “realidades” – ilustrativas justamente do papel do Estado e desse Estado paralelo para os assuntos culturais que os portugueses acham por vezes ser a Fundação Calouste Gulbenkian – os sintomas de uma certa decadência. Augusto M. Seabra, colunista neste jornal, parece fazer parte dos perpetuadores deste discurso. Pelo menos, é isso o que se pode deduzir do seu último artigo, publicado no passado domingo com o título “Dissonâncias”, do qual passamos a destacar os seus pontos fundamentais.
Começa o articulista por referir que, nos últimos tempos, se têm usado certas “estatísticas” como “um indicador da vitalidade na criação musical em Portugal”. De seguida, ele próprio acrescenta vários dados que corroboram essa impressão, para concluir, contudo, que a interrogação sobre as “condições reais da afirmação do pensamento contemporâneo em música” revelaria um panorama “muito mais paradoxal e talvez mesmo periclitante”. Deixando de lado a crítica à propriedade com que o autor usa aqui os dois adjectivos, os quais parecem ser neste contexto um tanto disparatados, referiremos a seguir os argumentos que fundamentam uma tal afirmação. Assim, a culpa desta situação cabe, como não podia deixar de ser, ao Estado e à Gulbenkian, cujo “desinvestimento” é ignorado por aqueles que se exprimem com um “discurso reconfortado”: a esperança está nos resistentes que, como ele próprio, ou como Jorge Peixinho (por sinal, um compositor apoiado pela Fundação Gulbenkian), são capazes de exprimir “dissonâncias num discurso reconfortado”, das quais pouco importa se, como é o seu caso, se fundamentam numa visão parcial e descontextualizada da realidade.
Contudo, o discurso que, nesse artigo, se evidencia como um claro “discurso reconfortado” (e, além disso, nostálgico) é o do próprio Augusto M. Seabra e de quem concorda com ele, porque ao responsabilizar exclusivamente as instituições públicas (ou abusivamente assimiladas, como é o caso da Fundação Gulbenkian) das condições em que se desenvolve em Portugal a criação musical mais recente está a defender uma política de braços caídos que, por seu turno, desresponsabiliza e minoriza o papel dos próprios compositores, do público e de todos os agentes envolvidos na prática musical. Só o desconhecimento sobre o que é a realidade da música contemporânea e as vias pelas quais se desenvolve é que pode justificar a ideia de que são as encomendas – e mais particularmente as encomendas de obras destinadas a serem ouvidas nas duas catedrais da música em Portugal, o Grande Auditório Gulbenkian e o Teatro Nacional de São Carlos, executadas por um tipo de formação que está hoje a ser questionada em todo o mundo, a orquestra oitocentista – os estímulos que imprimirão um maior dinamismo e darão uma maior consistência à criação musical portuguesa.
Engana-se redondamente Augusto M. Seabra. O dinamismo da música contemporânea portuguesa depende de outros factores. Mede-se, por exemplo, pelos estudantes de composição que anualmente saem das escolas superiores de música e pelos que estão disseminados por diversos países europeus completando a sua formação, assim como pelas iniciativas surgidas neste âmbito que têm como objectivo a apresentação de obras recentes interpretadas por jovens músicos. Pela presença, entre muitos outros, de compositores como Luís Tinoco, Miguel Azguime, António Chagas Rosa ou João Pedro Oliveira (todos eles alguma vez apoiados no seu percurso pela Fundação Gulbenkian) nos circuitos internacionais. Está nas encomendas a compositores e na programação de obras recentes por parte de grupos e de festivais (que são financiados, não o esqueçamos, maioritariamente pelo Estado), para serem interpretadas perante plateias cheias em Viana do Castelo, em Castelo Branco, em Espinho e não apenas em Lisboa ou no Porto. Está também na vitalidade que vai mostrando a criação nas margens da composição erudita de matriz mais tradicional. É até irónico que Augusto M. Seabra, o grande crítico da patrimonialização da história da música portuguesa (ver os seus depreciativos comentários a propósito da “recuperação” da música de Alfredo Keil e de Frederico de Freitas), sugira que deveria ser o Estado a empreender a “promoção “ e a “difusão” da música contemporânea através da sua fixação em edições discográficas.
Para uma correcta avaliação do actual panorama da música contemporânea em Portugal, será preciso olhar para além da alma mater representada pela Gulbenkian e, já agora, do almus pater representado pelo Estado. Onde fica a responsabilidade das discográficas e das editoras de música impressa (que são as entidades que deveriam encontrar o apoio de mecenas, estatais ou privados, para difundir as obras contidas nos seus catálogos), dos agentes que não existem, da Sociedade Portuguesa de Autores? A responsabilidade pelo futuro da criação musical portuguesa cabe sem dúvida a estes, mas também à imprensa. A notícia de estreias, com data marcada, de obras de compositores portugueses e a crítica pontual das primeiras audições fazem mais pela difusão e integração da criação musical contemporânea na cultura do país do que os dardos dirigidos a instituições cuja responsabilidade no âmbito da música até ultrapassa o apoio à criação contemporânea e que, aliás, se têm distinguido pela atenção que lhe têm prestado nas suas programações, ignorando inclusivamente durante anos a fio uma certa indiferença generalizada do público. Cabe, por último, aos intérpretes e, sobretudo, aos próprios compositores, os quais parece que ainda não se aperceberam da necessidade de se organizarem em associações artísticas e profissionais eficientes.
Publicado originalmente na secção "Cultura" do jornal PÚBLICO.