Hoje recebi um CD com obras recentes de Sérgio Azevedo (na foto). Não me peçam a referência porque, infelizmente, nenhuma delas está gravada comercialmente. Todas mereceriam uma menção especial, mas é apenas uma delas, o Concerto para Dois Pianos, a que está directamente ligada a este post. Quase dois anos depois da sua estreia, acabo de escutá-la e este comentário vem no rescaldo do meu entusiasmo: a obra é mesmo muito boa. Para quando é que poderá ser escutada ao vivo em Portugal?
O concerto, escrito entre 1999 e 2003, é dedicado a José Ramón Encinar. Foi o resultado de uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian, mas, estranhamente, a sua estreia teve lugar em Madrid, no Auditorio Nacional de Musica no dia 10 de Junho de 2003. Os intérpretes foram os magníficos António Rosado e Artur Pizarro, juntamente com a Orquesta de la Comunidad de Madrid sob a direcção de Luca Pfaff.
O próprio Sérgio identifica as citações que utiliza na obra, recorrendo a alguns compositores que fazem parte do seu «cânone» pessoal: Ligeti, Nielsen e Mahler. Contudo, o recurso à citação, neste caso é um assunto secundário, porque o que se destaca é um universo criativo muito coerente, que remete para outras obras da sua autoria. O concerto enquadra-se numa das (múltiplas) facetas do autor, que se evidencia especialmente na sua produção posterior a 1998, onde ao rigoroso trabalho do ponto de vista da técnica da composição, junta-se a busca de novos efeitos sonoros. A peça também reflecte um certo gosto pela reprodução de efeitos mecânicos, assim como a sua pessoal ironia. A surpreendente riqueza, técnica e poética, que se evidencia no seu extenso catálogo, faz com que seja bastante redutor considerar este concerto como estritamente “representativo” do seu estilo. Contudo, coloca-nos perante um universo sonoro denso, repleto de acontecimentos, e ao mesmo tempo um pouco obsessivo e grotesco, que é a assinatura do compositor.
Claro está, gostava que pudessem escutar o concerto. Por enquanto, vão ter de conformar-se com a leitura do comentário à obra feito pelo próprio autor:
«O Concerto para Dois Pianos foi composto entre 1999 e 2003. Se o Quinteto de Clarinete (1996) provou ser um ponto de viragem na minha música, Atlas' Journey (1998) foi sem dúvida a culminação desse ponto de viragem. Tanto o Concerto para Dois Pianos e Atlas' Journey são, sem dúvida, os pontos culminantes desse período, no qual comecei uma aproximação mais sistemática a técnicas de composição baseadas em grupos de tons inteiros, harmonia espectral, heterofonia, campos harmónicos e um cuidado extremo com certos efeitos peculiares de produção do som. As ideias poéticas e formais são agora completamente baseadas na análise de pinturas como a série das Catedrais de Monet, os desenhos impossíveis e enigmáticos de Escher, as pinturas surrealistas e contraditórias de Magritte, estruturas topológicas, fractais, séries numéricas, o mundo de escritores como Gombrowicz, Kafka, Mann, Borges e Musil, o cinema mudo dos primeiros 30 anos do século XX (particularmente os filmes de Murnau, Lang, Wiener, Dreyer e Chaplin), a ideia de caos, a nova física e as novas teorias matemáticas e cosmológicas, tempo e relógios, labirintos, mitos e estranhos mecanismos, a música louca e funcional dos “cartoons” e marionetas, as velhas teorias de ritmo e acentuação, o folclore da Europa Central, as novas teorias da percepção e da psicologia auditivas, e ainda a música de compositores como Stravinsky, Prokofief, Ligeti, Lindberg, Adams, Francesconi, Maxwell-Davies, Berio ou Birtwistle, entre outros. Todas estas variadas influências e ideias são tornadas coerentes pela análise dos seus pontos comuns. O uso de software especialmente desenhado para a edição musical foi também importante para mim, uma vez que posso agora facilmente analisar, por exemplo, mudanças extremas de tempo, ou cortar camadas e secções e combiná-las de novo num contexto completamente diverso. O Concerto para Dois Pianos, juntamente com Atlas’ Journey, aponta pois para uma nova direcção estilística.
Quis escrever uma peça extremamente brilhante e luminosa, rápida e virtuosística, como Petruska, na qual o humorístico e catastrófico mundo das marionetas estivesse presente. Porém, se em Atlas' Journey existe uma espécie de “história” por detrás da música, mesmo se não invectivando a música, no Concerto esta “história” não existe de todo. Pela primeira vez (sem contar com as obras tonais do meu catálogo), compus uma peça dividida em vários andamentos, uma fórmula que faz mais sentido para mim agora do que fazia há uns anos atrás, talvez uma consequência da nova claridade e direccionalidade harmónica da própria música.
No Concerto, tal como já em Atlas’ Journey, utilizo algumas citações “falsas” de outras peças, a maior parte escondida na estrutura profunda da obra, ou contendo tantas características comuns com a minha própria música, que raramente se “ouvem”. Tais citações servem servem unicamente propósitos simbólicos e poéticos pessoais, não tendo pois outro papel estrutural que não o de enfatizar alguns momentos da obra. A única citação real que é possível perceber claramente pode ser ouvida no primeiro andamento, uma espécie de rapsódia de sabor húngaro, cheia de ideias diferentes e um pouco caótica na sua construção. A fanfarra que serve como “sinal” inicial partilha algum humor com a bizarra música de “levantar de cortina” que se pode ouvir no início da ópera Le Grand Macabre de Ligeti. Também é evidente alguma música rápida, em atmosfera de tocata, que provém em linha directa de obras como os 2º e 3º Concertos para Piano de Prokofiev, ou do Concerto para Piano de Ligeti. Mas as única verdadeiras citações são de Ligeti (10 Peças para Quinteto de Sopros) e de Nielsen, da 6ª Sinfonia. No terceiro andamento, só para cordas e harpa, é o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler que serve de elemento desconstrutivo, numa quase-citação em que é apenas sugerido o ambiente harmónico dessa obra.»